Saturday, June 25, 2016

pensando em ingeborg, no dia de seu aniversário de 90 anos


eu vou contrariar minha própria regra de nunca citar os parcêro famoso das artistas/autoras sobre as quais escrevo (algo que me dá muita raiva. tipo quando o povo vai falar de gerda taro sempre tem que mencionar que ela era a mulher de robert capa, como se isso fosse contextualizar "melhor"). mas vou quebrar minha regra porque as cartas de amor que ingeborg escreveu para paul celan eram as coisas mais lindamente humanas, ela correndo atrás dele, ele sempre sem tempo ou ocupado consigo mesmo, a gente fica identificada, né. enfim aí vai (ah e as minha "tradução" é sempre pro recifês, ceis sabe, comigo regência plural e conjugação é coisa do passado):







de ingeborg bachmann para paul celan, viena, natal de 1948, carta não enviada

Natal, 1948

Querido, querido Paul!

Ontem e hoje eu pensei muito em tu, pensei muito na gente. Não te escrevo pra que tu me escreva de volta, te escrevo porque me faz bem e porque eu quero. Eu tinha pensado em ir te encontrar em Paris esses dias, mas aí um sentimento vaidoso e idiota de conscienciosidade me prendeu aqui e eu não fui. Como fazemos então:  n'algum lugar em Paris? Eu não sei, mas de qualquer forma seria lindo!

Três meses atrás do nada alguém me deu teu livro de presente. Eu não sabia que tinha sido publicado. Foi... foi como se o chão tivesse se aberto sob meus pés, e minhas mãos tremeram bem de levinho. Então passei muito tempo sem sentir nada. Aí algumas semanas atrás em Viena comentaram que os Jenés tinha ido para Paris. Eu também fui na viagem.

Eu ainda não sei o que a última primavera significou.  - Tu sabe que eu sempre quero saber direitinho o nome das coisas. - Que foi lindo eu sei, - e os poemas,  e O Poema, que nós fizemos um do outro. 

Hoje eu te amo. Eu queria muito te dizer isso, - porque naquela época eu não disse o suficiente.

Assim que eu tiver tempo, posso ir passar uns dias aí. Tu ia querer me ver também? Por uma hora, ou duas.

Com muito, muito amor!
Sua Ingeborg




de ingeborg bachmann para paul celan, munique, 18.01.1958

sábado
18-1-58


O Proust chegou. Que bonito!! (Tu me mima muito!)

Na noite em que [tu] me ligou, eu tive que pensar várias vezes no que tu me perguntasse: "Devo ir [praí]?" Tu não faz ideia o que significa pra mim que tu pergunte isso. Eu tive que cair no choro, porque sim, porque isso existe para mim e porque eu nunca tive isso antes.

Boa viagem, ânimo e não deixe nenhuma bobagem estragar tua felicidade. Eu vou pensar num lugar e te escrevo em Dresden. Por ora, se cuide!
 
Ingeborg




fiz uma tradução desse poema para nossa homenagem a dora lara barcelos, que reposto aqui:
 


Exílio

Eu sou um morto que perambula
em canto nenhum registrado
desconhecido no reino da política
supérfluo nas cidades douradas
e no campo fértil
descartado já há muito
e totalmente esquecido

Apenas vento, tempo e som

que eu, entre pessoas, não posso viver

Eu com a língua alemã
essa nuvem ao meu redor
que eu considero minha casa
me arrasto entre todas as línguas

Ai, como ela se eclipsa
a escuridão, o som da chuva
é pouco o que cai

Então é para onde tem luz que ela leva seu morto. 





e, uma vez que contrariei a porra da regra mermo, para terminar, uma tradução esbaforida que fiz pra corona, poema-tão-lindo que celan escreveu para ingeborg, publicado em seu primeiro livro, "mohn und gedächtnis", de 1952.




Corona

O outono devora suas folhas em minhas mãos: somos namorados.
Descascamos o tempo de dentro das nozes e o ensinamos a partir:
O tempo volta para a casca.

No espelho é domingo,
no sonho se dorme,
a boca diz a verdade.

Meu olhar desce para o sexo da amante:
Nos olhamos,
dizemos coisas sombrias,
nos amamos como papoula e memória,
dormimos como vinho nas conchas,
como o brilho sanguíneo da lua no mar.

De pé abraçados à janela, o povo na rua nos vê:
é tempo que saibam!
É tempo da pedra se preparar para florescer,
que a inquietação faça bater um coração.
É tempo de ser tempo.

É tempo.



Corona

Aus der Hand frißt der Herbst mir sein Blatt: wir sind Freunde.
Wir schälen die Zeit aus den Nüssen und lehren sie gehn:
die Zeit kehrt zurück in die Schale.

Im Spiegel ist Sonntag,
im Traum wird geschlafen,
der Mund redet wahr.

Mein Aug steigt hinab zum Geschlecht der Geliebten:
wir sehen uns an,
wir sagen uns Dunkles,
wir lieben einander wie Mohn und Gedächtnis,
wir schlafen wie Wein in den Muscheln,
wie das Meer im Blutstrahl des Mondes.

Wir stehen umschlungen im Fenster, sie sehen uns zu von der
                                                                Straße:
es ist Zeit, daß man weiß!
Es ist Zeit, daß der Stein sich zu blühen bequemt,
daß der Unrast ein Herz schlägt.
Es ist Zeit, daß es Zeit wird.

Es ist Zeit.



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