Depois que postei um vídeo de Lukas tomando a dose de reforço, algumas pessoas me escreveram questionando por que ele teve acesso à vacina, enquanto tantas outras nao têm. Acho importantíssimo trazer esse tema pra cá, pra todo mundo, porque ele toca em algumas questões importantes, que são muito maiores que um gringo vacinado, que queria compartilhar com vocês. São esboços de pensamentos, ainda, nada concreto e definitivo, provavelmente incompletos. Conto com a paciência de quem ler.
1. Direito versus privilégio
Basicamente, direito é algo que deve ser ampliado e privilégio é algo que deve ser combatido. Saúde pública, gratuita e acessível pra todos é um direito, mas nem todos têm acesso. Por isso é que a gente precisa sempre lutar (no capitalismo, nada nos é concedido sem luta) para que esse direito seja mantido, melhorado e ampliado. Já o acesso privilegiado e privatizado a serviços de qualidade precisa ser exposto, questionado e combatido. Volto a esse tópico no fim deste texto.
2. O SUS é muito muito muito maravilhoso e precisa ser protegido, mas não é perfeito
Ao menos na teoria, para ter acesso à vacina, uma pessoa precisa ter CPF AND comprovante de residência. Isso é um impedimento grave para alguns dos grupos mais vulneráveis da população: pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, pessoas vivendo em situação de rua, pessoas vivendo em ocupação, imigrantes sin papeles, refugiados etc. Sabemos muito bem que a absoluta maioria das pessoas que fazem parte destes grupos são pessoas negras, indígenas, não-brancas.
Para vocês terem uma ideia, a vacinação de refugiadosno Brasil só começou em agosto desse ano, quando muita gente já estava tomando a segunda dose. Só que já em março de 2021 a ONU alertava que imigrantes e refugiados de todo o mundo deveriam ter acesso aomesmo esquema de vacinação que os cidadãos, para combater a pandemia o mais rápido possível e evitar novas cepas do vírus. Posso garantir, como imigrante não-naturalizada vivendo na Alemanha há 11 anos, que meu acesso à vacina chegou tarde e não foi nada fácil de conseguir. Já Lukas é um mero turista, mas vou falar disso no tópico 5.
3. Discrepâncias de um sistema que é quase-perfeito no papel mas ainda tem falha na prática
Semana passada visitamos meu primo segundo Amaro Balu, agricultor familiar aposentado vivendo na minha Gravatá do Jaburu, distrito de Taquaritinga do Norte que, no Censo de 2003, tinha um índice de pobreza subjetiva em quase 47%. Amaro nos contou que as agentes da USF (Unidade de Saúde da Família) iam de casa em casa vacinando as pessoas e que ele já tinha tomado a terceira dose e mal podia esperar pela quarta. Amaro Balu é um sertanejo pobre de 79 anos.
esse é meu primo Amaro em 2021
aqui tem ele na época que eu achava que ia ser videomaker
kkk em 2006 (minuto 1'20'')
Já semana retrasada, na última das muitas atividades militantes que tivemos desde que chegamos em Recife, um companheiro do MTST nos explicou que quem vive em ocupação não estava tendo acesso à vacina, já que não podia comprovar residência. Foi a luta dos sem-teto, foi a organização popular e comunitária, que tornou acessível a vacina para mais trabalhadores vivendo em ou participando de ocupação.
4. A realidade é concreta
Vivemos no mundo como ele é. Europeus brancos vivem, em maior ou menor grau, dos resquícios de séculos de pilhagem europeia no sul global. Eles ainda são o Sujeito Viajante do nosso tempo. Lukas se inclui nessa lista. O turismo dessas pessoas é real e, como vimos:
a) esse turismo não vai ser questionado, nem impedido, nem regularizado enquanto vivermos sob o capitalismo – que, todos sabemos, está aí pra priorizar o lucro e não a manutenção da vida na Terra;
b) esse turismo não vai ser questionado, nem impedido, nem regularizado enquanto vivermos em governos entreguistas, sem foco em autonomia e soberania nacional;
c) esse turismo é um dos responsáveis pelo espalhamento da doença no mundo.
Assim sendo, já que a realidade concreta é que essas pessoas continuarão vindo, é da maior importância que ao menos elas estejam circulando vacinadas pelo nosso país – não por questões morais, mas simplesmente por questões de segurança sanitária nacional.
5. Racismo estrutural e privilégio branco
Eu não tenho a menor dúvida que o acesso de Lukas à vacina foi facilitado pelo fato de ele ser um homem europeu branco. Não preciso fazer nenhum esforço pra imaginar as milhares de pessoas não-brancas e não-naturalizadas, que tentaram se vacinar nao somente no Brasil mas também no mundo, sem conseguir. Na Europa, refugiados e imigrantes ainda encontram dificuldades em serem vacinados, por conta das absurdas lei de imigração. Aliás, #nobordersnonations.
5.1 Como Lukas conseguiu ser vacinado?
Tentamos em alguns pontos em Recife mas não conseguimos, apesar dele já ter comprovante de residência para os quase três meses que ficará aqui. O problema é que faltava o CPF. Já tínhamos desistido mas ontem, numa das muitas rodoviárias que passamos nos últimos dias, tínhamos três horas de espera pela lotação que íamos pegar e decidimos arriscar. A resposta da enfermeira: “Eu não sei o que é necessário, mas vou descobrir. Eu é que não vou deixar esse gringo circulando pelo meu Estado sem ter sido vacinado”. Ela nos disse que ia ver o que era preciso fazer e se consultou com um supervisor do PNI (Programa Nacional de Imunizacoes), que passou uma lista de documentos que estrangeiros devem apresentar: passaporte, RG alemão, comprovante de vacinação internacional (a caderneta amarelinha da OMS, que a mamãe aqui, hipocondríaca e esperta, mandou o boy trazer), comprovante de residência no Brasil, data de nascimento, filiação e, se aplicável, comprovante de comorbidade (Lukas, por exemplo, tem uma doença autoimune).
6. Quando é regra é clara mas é uma merda
A regra é clara: sem CPF não se vacina. Talkei. Mas a regra está errada. Então nossa lógica não pode passar a ser “nada mais justo que todos que não tenham CPF sejam tratados igualmente mal”. Essa não pode ser nossa forma de estar no mundo. A lógica precisa ser: por que não existe outra forma para vacinar aqueles que não têm documentos? Queremos que essa forma seja inventada e implementada.
Toda pessoa que quer e tenta se vacinar, e que tem o pedido de vacina recusado por causa da ausência de um papel: isso é que o problema.
7. O que diz a lei?
A LEI Nº 13.445, DE 24 DE MAIO DE 2017, que institui a lei de migração, dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante. Essa lei estabelece, no Artigo 3, inciso XI, o acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social. No artigo 4, inciso VIII, ela estabelece acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória.
8. Uma análise errada leva a uma ação errada
A pergunta ponto-de-partida, aquela que diz “por que esse gringo foi vacinado?” é excelente. Mas ela tanto ignora a legislação brasileira (ver tópico 7), como também deixa não respondida a questão da má-distribuição dos recursos do SUS e a não-universalidade do seus serviços, na prática.
Quando a gente parte do pressuposto que racismo estrutural existe e precisa acabar; que imigrante existe e precisa ser vacinado; que o SUS existe mas que precisa ser melhorado, temos em mãos uma bússola muito mais útil. Outra maneira de dizer a mesma coisa: é do interesse de todos que todos estejam vacinados.
Outras perguntas que podem ser feitas: Quem são os grupos que não têm acesso à vacina por causa das regras de vacinação? Porque alguns se vacinam e outros não? E o mais importante: O que é preciso, e o que podemos fazer, pra mudar essa situação?
Algumas das respostas que eu daria: acabar com o teto de gastos; restabelecer o Bolsa Família; fortalecer os programas de saúde da família; restabelecer os agentes comunitários de saúde; exigir que a lei de migracao seja posta em prática para imigrantes nao brancos e refugiados; mudar as regras de acesso a vacinacao, sobretudo em momentos de crise sanitária; se organizar politicamente; derrotar o bolsonarismo nas urnas e fora delas etc.
9. Aqui, uma lista de organizações que você pode se organizar e ajudar a melhorar nosso quadro:
a) PCB: https://pcb.org.br/portal2/se-organize-no-pcb/
b) PSOL: https://psol50.org.br/filie-se/
c) PT: https://pt.org.br/filiacao/
d) PCdoB: https://pcdobdigital.org.br/autenticacao/filiacao
d) Veja como descobrir se existe um sindicato da sua profissão: https://www.salario.com.br/trabalhista/como-descobrir-sindicato-da-profissao/
e) Seja voluntário da campanha Maos Solidárias: https://www.campanhamaossolidarias.org/apoie-nos
e dá um google tu aí também né bebê!