Friday, September 11, 2015

o beijo, de anne sexton



O BEIJO

Minha boca lateja como uma úlcera.
Fui o ano inteiro ignorada, noites
chatíssimas, nada além de cotovelos ásperos
e caixinhas de Kleenex gritando crybaby
crybaby, sua abestalhada!

Até ontem meu corpo era inútil.
Agora se rasga nas partes ossudas.
Faz do manto de Maria pó, de nó em nó
e olhe – Agora atingida por um certo raio:
Bum! Ressuscitou!

Antigamente havia um barco, de madeira
e sem utilidade, sem mar embaixo
e precisando de uma demão de tinta. Não era muito
além de um bocado de tábua. Mas ela você alçou e laçou.
Ela foi escolhida.

Meus nervos à beira de um ataque. Posso ouvi-los como
instrumentos musicais. Onde antes havia silêncio:
bateria, irremediavelmente as cordas tocam. Você é o responsável.
Trabalho de gênio. Querido, o compositor se mete
fogo adentro.






THE KISS

My mouth blooms like a cut.
I've been wronged all year, tedious
nights, nothing but rough elbows in them
and delicate boxes of Kleenex calling crybaby
crybaby, you fool! 


Before today my body was useless.
Now it's tearing at its square corners.
It's tearing old Mary's garments off, knot by knot
and see — Now it's shot full of these electric bolts.
Zing! A resurrection!

Once it was a boat, quite wooden
and with no business, no salt water under it
and in need of some paint. It was no more
than a group of boards. But you hoisted her, rigged her.
She's been elected.

My nerves are turned on. I hear them like
musical instruments. Where there was silence
the drums, the strings are incurably playing. You did this.
Pure genius at work. Darling, the composer has stepped
into fire.





"o beijo" é o segundo poema do livro love poems. tanto poema quanto livro não são os melhores de anne, mas o que faz de love poems especialmente atraente para mim é o livro de poesia como projeto. é a análise laboratorial que ela desenvolve em torno de um único tema e, ainda que ela aqui e ali fale de outras coisas, o tema ou mote é o adultério e seus protagonistas, com o corpo como arma do crime, por assim dizer.

nos pontos altos, anne transfere a obsessão que antes tinha com a morte e historização da própria biografia, prum homem (o marido e o amante). poemas como for my lover returning to his wife, pelo qual sou especificamente obcecada e cuja tradução pretendo postar aqui um dia antes de 2019, têm uma força mãe-natureza e um nível de empatia que ainda me deixam besta.

os love poems foram escritos durante o romance que anne sexton teve com seu segundo analista. sem saber dessa informação, é mais difícil entender por quê da linguagem às vezes encriptada que anne - uma senhora casada e mãe de filhos, dos subúrbios de boston - utiliza no livro, publicado em 1969. essa linguagem encriptada resulta eventualmente num tom solene que às vezes cai na cafonice, com metáforas fábio júnior distantes da força crua que aparece no livro anterior, all my pretty ones. essa "solenidade" tem sido minha maior dificuldade traduzindo outros dos love poems. nem por isso o livro é menos sexy. se não me engano, foi o que mais vendeu (até a publicação de transformations, em 1971).

nesse livro, anne também relaxa com métrica-e-musicalidade que lhe consagraram em to bedlam and part way back, seu livro de estreia. o cuidado com a versificação que ela mostrou nos seus primeiros dois livros têm, na minha opinião, muito a ver com a doença mental de que ela sofria. em love poems, no entanto, ela transfere a obsessão pela estética em uma obsessão pelo sujeito. uma troca tão ou mais arriscada.

esse poema eu gosto pela imagem da mulher febril que, depois dum período de seca, volta a ser beijada (e comida, né, assim esperamos); eu gosto da descrição da explosão interna que anne faz, de como ela lida com o tesão e a adoração que ela dedica ao boy que a tirou do limbo sexual, chamando-o de gênio.


essa foi então a minha tradução-traição pro português nordestino (tentando diminuir as "solenices" do poema original; tentando me afastar da semântica e me aproximar do que o poema quer dizer, mas mantendo algumas rimas/ecos internos).

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