Thursday, October 01, 2015

todos conhecem a história da outra, de anne sexton

TODOS CONHECEM A HISTóRIA DA OUTRA

É um Walden particular.1
Ela está sozinha na cama
enquanto o corpo dele se ajeita e dispara,
decidido como uma flecha.
Mas isso tá mal explicado.2
A luz do dia não é amiga de ninguém.
Deus chega como se fosse cobrar o aluguel
e acende a luz quando não convém.3
Agora ela está assim-assado.4
Ele põe seus ossos de volta no lugar,
atrasa o relógio em uma hora.
Ela conhece a carne, o balão feito de pele,
os membros partidos, o assoalho,
o teto, o teto removível.5
Ela é meio-período sua eleição.
Você conhece essa história. Fique olhando:
quando termina ele a coloca,
como um telefone, no gancho.6




YOU ALL KNOW THE STORY OF THE OTHER WOMAN

It's a little Walden.
She is private in her breathbed
as his body takes off and flies,
flies straight as an arrow.
But it's a bad translation.
Daylight is nobody's friend.
God comes in like a landlord
and flashes on his brassy lamp.
Now she is just so-so.
He puts his bones back on,
turning the clock band an hour.
She knows flesh, that skin balloon,
the unbound limbs, the boards,
the roof, the removable roof.
She is his selection, part time.
You know the story too! Look,
when it is over he places her,
like a phone, on the hook.


notas
#1Walden é o livro de Thoreau sobre vida simples, isolada, em conexão com natureza (é sobre outra coisa, na verdade, mas esse é o cenário do livro). ao contextualizar a ação do poema citando Walden, Anne faz alusão a um lugar idílico, onde "dentro" é que se passam os conflitos (dentro da casa, no poema; dentro do sujeito, em Thoreau).

#2
"tá" porque no poema ela escreve "it's" em vez de "it is". como sabemos o apreço de Anne pela língua falada, deixei assim.


#3
no original, ela prefere adjetivar a luz do que a ação de deus. como não achei nenhuma traudção pra brassy que me agradasse, e pra manter a musicalidade que aparece aí (nobody's friend/brassy lamp), ficou assim, adjetivando não a lâmpada, mas a própria ação de acender a luz.

quando a luz é acesa ou o dia amanhece (deus acendendo a luz), é quando somos pegos no flagra, é a hora de sentir culpa.

#4
como o poema tem duas perspectivas (a do homem e a da "outra"), confesso que não sei se ela diz
she is so-so no sentido de estar de humor mais ou menos, ou de estar apenas marromeno bonita. tipo: depois que se acende a luz (ou seja, acabou a festa), o humor dela fica abalado - que nunca? - ou depois de se acender a luz (ou seja, acabou a festa), ele a pode ver e já não acha tão bonita assim, acha ela apenas "mais ou menos". então a tradução ficou meio neutra, embora neutra de cu é rola. mas tive que ficar em cima do muro porque não sei o que fazer. por ora, essa é a solução, mas vou continuar pensando nisso. aceitamos mastercard e sugestões.

#5
esses três versos são muito bonitos, como ela mistura descrição de corpo com contexto.
teto removível é uma alusão clara àquelas casas de barbie que se pode retirar o teto e manipular e olhar a boneca desde cima. e quando a brincadeira acaba, metemos a barbie dentro da casa, tampamos com o teto e tchau, até que se tenha vontade de brincar de novo (enquanto isso a boneca fica lá...).

#
6
 o original tem o
look!, que é um recurso não raro de anne (aparece inclusive em o nado nu). quem diz look! aponta um dedo pra alguma coisa, e é disso que esse livro inteiro trata. eu demorei muito pra decidir como traduzir essa estrofe, porque "fique olhando" tem essa denotação voyeuristica também, mas é menos acusativa, é mais sutil do que "olha!". mas como queria respeitar a musicalidade de look/hook, optei por essa solução, porque tampouco não consegui pensar em nenhum sinônimo para 'colocar o telefone no gancho' que rimasse com 'olha'.

outro comentário
eu acho o título desse poema tão triste, no sentindo do autoesculacho que ela mesma se impõe. primeiro porque é importante lembrar que o amante também era casado, mas apenas 
ela tinha o papel de criminosa. cabe apenas a Anne o estigma, porque ela vivia a sexualidade fora do contrato social. já para o amante (casado e que seria "o outro" em relação ao marido de anne) não cabe nenhum julgamento, já que o casamento privilegia a figura masculina em seus acordos (ou seja, ter uma amante faz parte do pacote, tudo ok). 

eu sei, o poema foi escrito na década de 60 nos EUA - mas estamos falando dele hoje. a "outra" é uma personagem a quem ainda não foi conferido nenhum status social. como a sexualidade feminina, regulamentada pelo Estado, é legitimizada unicamente através da figura da esposa, todo tipo de sexualidade experimentada em outros contextos, em outros papeis sociais ("a outra", "a solteira sexualmente ativa (gay ou hetero)", "a assexuada" etc.) é visto como rompimento com o contrato social e é, portanto, marginal, digna de condenação.


pronto, termino afinal essa tradução-ladainha - desculpem o incômodo, mas de que serviriam os poemas se não nos fizessem pensar em outra coisa além do poema em si?




outras traduções de anne sexton:
o beijo
o nado nu

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