Saturday, February 27, 2016

"para fazer o meu projeto de realidade"



durante a feitura de o martelo, celan estava comigo o tempo todo. se o livro já é histérico, sem celan seria um alto-falante desregulado. foi fundamental a companhia dele e os toques que ele foi me dando, pra baixar o volume, aumentar o volume, encontrar a elegância da palavra certa ou aceitar o fato de que às vezes não há palavra alguma e mesmo assim dar um jeito.

a forma como celan aborda e trabalha o trauma (no seu caso, o holocausto) me é muito cara, pois ele se debruça sobre a consciência de não haver linguagem apropriada para articulá-lo e trabalha com essas fendas, encarando e "ferramentizando" exatamente essa impossibilidade de dizer. ele sabe que é a expressão da dor exatamente a primeira a ser golpeada, e não exatamente aquilo que dói.

o discurso de agradecimento que ele fez em 1958 quando ganhou o prêmio literário de bremen é uma das coisas mais fundamentais da minha vida trabalhal e hoje, relendo-o para escrever um texto pra uma coletânea da cepe, acabei ficando com vontade de transcrever o trecho final aqui:


(...)
No meio de tantas perdas, uma coisa permaneceu acessível, próxima e salva - a língua.

Sim, apesar de tudo, ela, a língua, permaneceu a salvo. Mas depois teve de atravessar o seu próprio vazio de respostas, terrível emudecimento, as mil trevas de um discurso letal. Ela fez a travessia e não gastou uma palavra com o que aconteceu, mas atravessou esses acontecimentos. Fez a travessia e pôde reemergir "enriquecida" com tudo isso. Nesses anos e nos seguintes tentei escrever poemas nesta língua: para falar, para me orientar, para saber onde me encontrava e onde isso me iria levar, para fazer o meu projeto de realidade.

Foi, como podem ver, acontecimento, movimento, estar sempre a caminho,  foi a tentativa de encontrar um rumo. E se pergunto qual é seu sentido, então penso que terei de dizer a mim próprio que nesta pergunta também fala a pergunta sobre o sentido dos ponteiros do relógio.

Porque o poema não é intemporal. É certo que proclama uma pretensão de infinito, procurar atuar através dos tempos - através deles, mas não para além deles.

O poema, sendo como é uma forma de manifestação da linguagem e, por conseguinte, na sua essência dialógico, pode ser uma mensagem na garrafa, lançada ao mar na convicção - decerto nem sempre muito esperançada - de um dia ir dar a alguma praia, talvez uma praia do coração. Também neste sentido os poemas estão a caminho - têm um rumo. 


Para onde? Em direção a algo de aberto, de ocupável, talvez a um tu apostrofável, a uma realidade apostrofável. Penso que, para o poema, o que conta são essas realidades. E acredito ainda que raciocínios como este acompanham, não só os meus próprios esforços, mas também os de outros poetas da geração mais nova. São os esforços de quem, sobrevoando por estrelas que são obra humana, de quem, sem tecto, também neste sentido até agora nem sonhado e por isso desprotegido da forma mais inquietante, vai ao encontro da língua com sua existência, ferido de realidade e em busca de realidade.



3 comments:

T said...

obrigada.

elritmodelascosas said...

gosto tanto de ti, tanto daqui e de todos os suspiros que o polaroides me arrancou no alto dos meus vinte e..muitos. beijos

elritmodelascosas said...

ah... e... se tiver um tempo de uma lida no caiscaos.blogspot.com.br um auto desabafo de quem sente muito por não ser nada