Monday, March 21, 2016

para um corpo que se apaga

hoje fiquei horas tentando me lembrar das coisas que vivi contigo. cavando na memória coisas de infância, cenas, cheiros, frases. não consegui me lembrar de nada direito, porque minha infância foi ruim e eu só tenho lembrança ruim haha veja só que merda, mulher.

só me vieram borrões, uns ecos, resquícios de qualquer coisa, um pé de jambo, um cachorro, uma casa meio escura, a praia, os anos 80 no brasil, a televisão ligada na globo. nem sei se eu fiz parte daquilo que julgo lembrar, ou estou me inserindo nalguma cena que alguém me contou, mas que eu nunca vivi. eu não estava lá quando tua irmã enfiou uma lagartixa na boca sem querer, e tu morresse de nojo. ou estava?

sei tu era meio disléxica e falava as coisas meio errado. tinha outro tempo, mais lento, que contrastava com o fogo interior da tua irmã gêmea; sei que tu gostava de reggae, de praia, do mar, sei que gostava de sopa mesmo se estivesse azeda (hahahaha que linda). sei que me chamava de ivinha, tinha os dentes perfeitos, o sorriso que se abria devagar, os dedos longos. mulher, tão pouco eu sei de tu, tanto mais eu podia saber, mas eu mesma estava ocupada fugindo dos meus fantasmas. e agora fica o mistério eterno da tua ausência.

mas eu tenho a vida inteira pela frente pra inventar memórias e vínculos, pra aprofundar meu amor por você, pra te inventar dentro de mim. sei também que muita gente perde você hoje mais do que eu te perco.

que sorte eu tive de me despedir de você, tu lembra? passei a tarde do teu lado jogada na tua cama, fofocando, falando merda, falando mal do povo, a gente conversou a tarde toda como duas adolescentes. tirando a fragilidade do teu corpo, a magreza, ocouroeoosso, tuas piadas rápidas e tua soberania, tua integridade moral não entregavam o câncer que ia fazendo o que um câncer is supposed to do.

a gente tomou água de coco na cama. tu dissesse: "minha vida virou de cabeça pra baixo". eu escutei humilhada de não saber que dor é essa que era a tua. e depois dissesse, hilária "eu tenho lá saco de pensar em botar brinco, passar batom? oxe" e eu morri de rir do teu abuso.

eu vou falar um negócio pra tu: eu nunca vi ninguém tão lindo como te vi naquele dia. eu falei isso pra todos os meus amigos, pra jacó. falei pra eles que tu mudou a minha vida. porque tu estava aberta ao teu destino. não havia nem beatice na tua confiança de ficar boa, nem havia pessimismo na forma como tu encarava a força de tua doença.

foi a coisa mais poderosa que eu vi na vida. uma pessoa frágil e forte, tudo ao mesmo tempo. humana, apesar do elemento desumano de uma doença. eu chorei muito depois, de emoção, porque te ver tão inteira foi uma revelação. eu nunca tive pena de você, porque você nunca inspirou pena.

a última vez que a gente se viu foi durante aquela chuva que deu em recife. caiu uma chuva que pareceu durar 4 anos. eu fui me refugiar na tua casa porque teu prédio tem gerador. eu queria tomar banho. a gente ficou na janela contemplando a cidade no escuro, em completo blecaute.

olhamos a cidade se apagar, juntas, e eu dormi na tua casa. no outro dia de manhã, quando eu fui me despedir bem dramática, cheia de dedo, tu dissesse: "xau, ivi, sem essa de despedida, deixa de frescura, vai timbora". e eu te obedeci, e me desse tanta força pra viver melhor. tu mudasse minha vida pra sempre.

num blecaute, não é porque deixamos de ver a cidade que ela deixa de estar lá. hoje as luzes do teu corpo se apagaram, prima, mas as luzes da tua presença vão ficar acesas para sempre.

que honra foi respirar o mesmo ar que você, minha filha. que honra. xau, minha querida, sem essa frescura de despedida, porque tu fica pra sempre dentro de mim.




chove em macondo from adelaide ivánova on Vimeo.

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