Monday, August 03, 2020

uma tradução de lamento borincano pro recifês e umas pitanga pra chorar



lamento sertanejo

passa doido de alegria com sua jumentinha
e vai para a cidade, vai para a cidade
leva no seu pensamento todo mundo
cheio de felicidade, de felicidade
pensa em melhorar a situação
de sua casa, que é toda sua alegria, sim

e alegre o matutinho vai pensado assim
dizendo assim, cantando assim pelo caminho:
"se eu vendo essa carga meu deus querido
um traje para a mulher eu vou comprar!"
e alegre vai sua burrinha também
sentindo seu cantar
que é todo um hino de alegria

e nisso vem o nascer do dia
ao chegar na feira da cidade
passa a manhã  inteira sem que ninguém queira
sua carga comprar, sua carga comprar
tudo está deserto e o povo está passando
necessidade, necessidade
os lamentos se ouvem em toda parte
em caruaru, infeliz cidade

e triste o matutinho vai pensando assim
dizendo assim, chorando assim pelo caminho
"que será de caruaru meu deus querido
que será dos meus filhos e do meu lar"
caruaru a capital do forró
a que, ao cantar, o grande gonzaga
chamou de país 
e agora que sofre com tantos pesares
deixa eu cantá-los também


 


 por anos era impossível ouvir lamento borincano sem cair nos prantos. a partir do momento que pude entender a letra (com aquela versão de caetano veloso), ela sempre me lembrou vovô, a parte da biografia dele que não vivi, porque foi antes deu nascer. imaginar vovô perambulando pelo agreste de pernambuco tentando vender, como ambulante, os frutos de seu trabalho, era imagem e passado demais pra mim, que só o conheci como agricultor aposentado pelo funrural.

com o tempo minha relação com a letra, assim como com a ausência de vovô, morto em 2003, foi ficando menos dolorosa, porque à medida que eu me politizava mais agência eu via na existência dele (sofrida pela falta de recursos, mas plena na consciência de classe que ele tinha).

hoje eu consigo escutar lamento borincano como o retrato da realidade dos trabalhadores rurais e/ou autônomos da américa latina e das periferias do capitalismo que ela é. não tenho fetiche pela derrota e não romantizo o sofrimento do povo, mas acho que essa letra, assim como a de pearls de sade, e asa branca, de luiz gonzaga, nos ajudam a lembrar que existe um mundo cheio de gente sofrendo por questões que atravessam, em maior ou menor escala, todes nós trabalhadores.

eu fiz essa tradução sem muito rigor métrico, apenas pensando em vovô e nessas músicas latinas, que são icônicas pra classe trabalhadora e pros emigrados internos. e escrevo esse post ciente de que essas que cito, lamento borincano e asa branca, são apenas duas de milhares, porque se tem uma coisa que ninguém sabe fazer melhor do que a américa latina é música popular. 

fiz essa tradução num domingo de noite morrendo de saudade de pernambuco, de vovô, de vovó, do nordeste, preocupada com o agreste de pernambuco que tanto tem sofrido com o corona, preocupada com a paraíba, enfim, preocupada.

*

a versão original, do portorriquenho Rafael Hernández Marín, reflete a situação econômica dos trabalhadores rurais pobres de porto rico do anos 20, cujo sofrimento culmina com a depressão de 1929 (a música foi gravada no mesmo ano). o que traduzi como "matutinho" é, no original, "jibarito" - jíbaro é relativo a um povo ameríndio da zona oriental do equador ou o nome que se refere aos camponeses que habitam as regiões montanhosas da ilha de porto rico/Borinquen. a canção não usa o nome moderno porto rico, mas sim seu nome pré-colombiano, Boriquen (daí o título). eu tomei a liberdade de traduzir Borinquen para Caruaru porque traduzi a letra pensando em vovô. no original, Hernandez Marín cita ainda o poeta portorriquenho José Gautier Benitez ("el gran gautier"), que traduzi como luiz gonzaga que é, por sua vez, o compositor de asa branca, um poema sobre migração interna:






asa branca
luiz gonzaga

Quando olhei a terra ardendo
Qual fogueira de São João
Eu perguntei a Deus do céu, ai
Por que tamanha judiação
Eu perguntei a Deus do céu, ai
Por que tamanha judiação
Quando olhei a terra ardendo
Qual fogueira de São João
Eu perguntei a Deus do céu, ai
Por que tamanha judiação
Eu perguntei a Deus do céu, ai
Por que tamanha judiação
Que braseiro, que fornaia
Nem um pé de plantação
Por falta d'água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão
Por farta d'água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão
Inté mesmo a asa branca
Bateu asas do sertão
Entonce eu disse, adeus Rosinha
Guarda contigo meu coração
Entonce eu disse, adeus Rosinha
Guarda contigo meu coração
Hoje longe, muitas légua
Numa triste solidão
Espero a chuva cair de novo
Pra mim vortar ai pro meu sertão
Espero a chuva cair de novo
Pra mim vortar ai pro meu sertão
Quando o verde dos teus olhos
Se espalhar na plantação
Eu te asseguro não chore não, viu
Que eu voltarei, viu
Meu coração
Eu te asseguro não chore não, viu
Que eu voltarei, viu
Meu coração

*

para alegrar nossos corações, recomendo ouvir esse podcast com a história de maria, que conseguiu se livrar de são paulo e voltou pro seu sertão. agradeço demais à amiga raquel por ter enviado essa lindeza. e queria dedicar esse post também à amiga jéssica, que vai saber do que tô falando.


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