eu tive um professor de geometria que chegava na escola de harley-davidson. era um coitado, que falava mal de mim nas outras salas, porque eu tinha cabelo rosa e ouvia nirvana. chegou a dizer que eu cheirava cola, o que, em vez do embaraco (seu provável objetivo), causou muitas gargalhadas à mesa de jantar da minha casa - onde se sentavam três mulheres deveras ocupadas pra se incomodar com essa mentira um pouco grave.
eu nunca liguei pra geometria. estava mais preocupada com fato de que nao conseguia entender kafka e machado de assis - estava na transicao de "confissoes de adolescentes" para os clássicos, e minha burrice para entender a vida me incomodava muito. nao que geometria nao seja importante - mas era uma coisa que simplesmente nao era do meu interesse.
para esse professor lazarento, que sempre fazia piadas homofóbicas, machistas, que quase me reprovou (com razao, claro, meus 10 em história nao cobriam meus 3 em geometria!), que tinha dificuldades em lidar com adolescentes que nao usavam cabelo escovado e calca da m.officer, eu dedico estes dizeres de simone weil, operária e filósofa, no texto "reflexao sobre o bom uso dos estudos":
nao ter dom, nem gosto natural pela geometria nao impede a investigacao de um problema, nem o estudo de uma demonstracao impede o desenvolvimento da atencao. é quase o contrário. é quase uma circunstância favorável. se buscamos com verdadeira atencao a solucao de um problema de geometria e, se ao cabo de uma hora, estamos como no princípio, teremos avancado, no entanto, no decorrer de cada minuto dessa hora, para outra dimensao mais misteriosa. sem sentir, sem saber, esse esforco, aparentemente inútil, arremessa mais luz para dentro da alma. o fruto será colhido mais para frente, em uma oracao; será colhido por acidente, num âmbito qualquer da inteligência, que nada terá a ver, talvez, com as matemáticas. talvez algum dia, a pessoa que fez esse esforco ineficaz será capaz de entender de forma mais direta a beleza de um verso de racine. mas que o fruto desse esforco deve ser encontrado em prece, é certo. nao há dúvidas disso.
provavelmente esse "professor" troglodita nunca ouviu falar de simone weil (como até ontem eu também nunca ouvira; obrigada, ricardo). de certo nunca leu confissoes de adolescente nem kafka nem machado de assis. ele chegou a esculhambar chico buarque, uma vez, numa aula. entao provavelmente, para este sujeito, a própria profissao à qual se dedica nunca o levará a uma transformacao como a sugerida por simone. uma pena.
Thursday, June 09, 2011
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
5 comments:
Linda,
a Harley-Davidson com certeza foi o máximo que ele conseguiu na vida.
No dia em que ela acabar - se já não acabou - não lhe sobrará nada.
A vida é assim.
Beijo.
PS: Obrigada pelo belo texto!
ler esse post foi um alívio. lutei com a matemática minha vida inteira, na mesma situação que você descreveu. enquanto eu queria mergulhar na literatura, na filosofia e na história, vinha sempre aquela matéria para me lembrar o quanto estudar algo que não interessa pode ser chato e desestimulante.
agora, no meu sexto ano de ciencias sociais, estou presa à estatística, matéria que estou fazendo pela quarta vez, a única coisa que me impede de estar formada. estudo, estudo e nada, frustração nas notas.
e, inconformada, penso: justo eu? que amo estudar? amo o conhecimento, os livros? agora, só pisar na faculdade para isso me embrulha o estômago, aumentando minha raiva por aqueles que diminuem pouco a pouco a identidade, o relativismo e, enfim, todo o resto da vida, que eles parecem desprezar por estar longe do instituto de matemática. ufa!
Ivi
Tuas "memórias de uma estudante adolescente", definem, com extrema cristalinidade, o que é educar.
Educar é fazer partos, é ajudar a nascer. O segredo está no partejador: os professores- obstetras usam fórceps, gostam de partos longos e dolorosos (como este teu, ainda tentando parir a tal da geometria). Os educadores, pelo contrário, são como as "dôlas" que gostam de conduzir um parto à media-luz, em água morna, às vezes ouvindo nirvana,ora lendo racine, o senhor dos anéis ou mesmo lendo uma oração como a de simone weil. Porém, e, mais que tudo, um educador-partejador (se) educa lendo este post.
Obrigada por me ensinar sobre a vida e por sustentar minha firme decisão: ser parteira na educação.
Com muito amor
mamis
teu professor era a junção de uns tantos que eu tive na escola. um certa vez disse que clarice lispector era feia. isso me deixou num incômodo, aos 17, que simplesmente parei de prestar atenção nos átomos sobre os quais o homem falava (na real: ele pulava na frente da sala para imitar átomos não por questões pedagógicas, mas para mostrar sua barriga malhada. eu sentia um senhor asco dele).
o outro foi meu professor de matemática (por acaso, me deu aula de geometria) que fazia piadas sem-graça, homofóbicas, machistas, tudo isso. e um dia eu tive que sair da aula dele e ele aproveitou minha ausência pra dizer em alto e bom tom pros meus colegas que eu era mesmo louca (num tom máster pejorativo).
no fim das contas, tive uma professora linda no último ano na escola de matemática que me ensinou tudo o que eu precisava e não precisava saber dessa matéria. me ensinou também ética ao ensinar até pros alunos que não prestavam muita atenção na aula.
Ótimo texto, seu e da Simone Weil.
Aliás, seus textos são sempre muito bons, mesmo os mais tristes. Sou leitora assídua.
Post a Comment