Wednesday, November 16, 2016

um poema de horácio costa, um quadro de leonilson, as coisas escorregadias da linguagem, dizeres de toni morrison e um post de júlia hansen


dados novos na paisagem

um veado gordo que quer ser fotografado
usando calcinhas de mulher bem apertadinhas
para um site gay onde ele pode postar o que bem entender
e haverá quem o encontre sexy e queira sair com ele

e uma paciente trans no melhor hospital brasileiro
talvez se recuperando de uma cirurgia de mudança de sexo
caminhando com a mãe e a tia no saguão até o caixa
para pagar o estacionamento          bem na minha frente

são dados novos na paisagem         e as nuvens
que se acumularam e cruzam o céu agora
não têm memória de que choveram ontem mesmo
a esta hora justo em cima da Grande São Paulo

as orquídeas que se abrem no grande vaso vitrificado
e exalam um perfume para lá de sensual não recordam se
na sua última floração resultaram tão inebriantes
ou se viraram conversation pieces como essas

do Hospital Einstein: as senhoras às três da tarde
já esgotaram todos os assuntos no saguão mas
ninguém que falasse da bicha trans que calçava
número 45 e tinha peitos fartos como Sofia Loren:

preferiram o tema das orquídeas nesta época do ano
e que perfume! não dá para crer! porque, sim,
há algo de novo na paisagem e as senhoras, ah,
têm andado mais cuidadosas com o que dizem.


(horácio costa em "a hora e a vez de candy darling": goiânia, martelo editorial, 2016).




"mulheres ciganos comunistas homossexuais 
negros aidéticos judeus aleijados"
leonilson, 
1990,
lápis de cor sobre papel





o poema genial de horácio costa, que à primeira vista analisa a capacidade de articular uma linguagem para o desconhecido, trata de visibilidade vs. invisibilidade; e na verdade acaba falando muito mais dos cegos do que dos supostos "invisíveis". aliás, eu ODEIO esse termo, que transfere pra alguém em eventual situação de vulnerabilidade a responsabilidade pela nossa incapacidade de vê-lx, de ver o mundo, de ver o outro.

o quadro de leonilson, também genial, mostra copinhos vazios que ganham os nomes de grupo marginalizados pela sociedade patriarcal. esse trabalho me deixa engasgada toda vez que o vejo.

no poema aparece o termo "mudança de sexo" quando o termo aceito atualmente é "cirurgia de redesignação de sexo" ou " cirurgia de adaptação de gênero".

no quadro de leonilson aparecem palavras hoje em dia impensáveis de ser usadas: ciganos (atualmente o certo é roma, sinti, calon ou ainda povos nômades, mas tem gente que não curte esse último), aidéticos (atualmente o certo é HIV positivo) e aleijado (atualmente pessoas portadoras de deficiência).

poderíamos rapidamente cair na armadilha de criticar esses trabalhos pelo uso desatualizado de sua linguagem. mas mesmo pra mim, que sou fiscal pussy riot em nome de uma linguagem empática (dos outros mas da minha acima de tudo), é importante considerar não somente a fenda temporal (o poema foi escrito em 2013, provavelmente antes da readaptação do termo "mudança de sexo" e o quadro foi feito em 1990, milênios antes de pessoas foda nas redes sociais começarem a nos fazer entender que ser politicamente correto é correto) mas principalmente QUEM está dizendo as coisas. e tanto horácio quanto leonilson podem, pela sua produção e compromisso com a homocultura, falar de uma certa forma que não seria permitida a uma pessoa cis e heterossexual.

anyways, o bonito (eu acho) é sempre cuidar das palavras, pensando no outro, mesmo que esse outro não seja talvez um interlocutor direto. as palavras vão pro mundo que nem os anjos, tem isso na torah e eu não sou judia mas acho massa.

nessa aula (é longa mas vale CADA FUCKING MINUTO) toni morrison (também conhecida como deus) fala sobre isso. que usar uma linguagem respeitosa, considerate, não retira potência do texto. ela fala que podia usar essa ou aquela palavra que, à primeira vista, causam impacto, mas que ela também pode do better than that:

deus falando


mas mais do que isso, hoje li esse post da minha querida júlia de carvalho hansen, que espero que me contamine pelos próximos anos:

ontem, depois de assistir a poderosa defesa de doutorado de uma amiga, onde 4 mulheres eram as professoras arguidoras e uma das discussões foi o direito à opacidade da linguagem, peguei carona com outra professora que eu não via há milênios e fomos no caminho concordando que o nosso desejo pra 2017 é que as pessoas do planeta ensinem aos seus filhos que eles podem sentir mais coisas, que é emocionalmente possível ter mais reações do que ficarem bravos, cheios de raiva ou inflexíveis em seus desejos de terem razão. a razão, ah a razão, como às vezes é tão indelicado ter razão.




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