Saturday, January 27, 2024

dias 12, 13, 14 e 15, lisboa

A primeira vez que fui à Lisboa foi 2009, foi quando conheci Armin, as leitoras mais antigas talvez se lembrem. Essa viagem foi muito importante, ela marca o re-começo da minha vida, depois de 2008, quando eu sonhava em juntar meus cacos morando o mais longe possível da macharada violenta de Recife, depois de ter (sobre)vivido a violência sexualizada e jurídica. Por isso, uma aura de magia envolveu Lisboa durante muito tempo, como se minha cura tivesse tudo a ver com ela, ou até fosse por causa dela (não foi, mas que ajudou, ajudou!). Mas essa mistificação da cidade era obviamente bem apolítica da minha parte porque, apesar de Portugal ser um dos países com os mais baixos índices violência de gênero da Europa, ainda assim este é o crime mais cometido no país.

Outro aspecto que eu nem prestei atenção, em 2009, foi a xenofobia contra brasileiros, fenômeno do qual só fui me dar conta em 2018. Era março, eu tinha ido para Lisboa para o lançamento da segunda edição portuguesa d'o marteloque aconteceria em paralelo ao primeiro Festival Feminista de Lisboa (do qual participei com algumas edições do finado zine MPPF) e à Marcha Feminista do 8 de março.

Foi durante essa viagem que aconteceram duas coisas atrozes: a morte de Victor Heringer, dia 7 de março de 2018 e o assassinato de Marielle Franco, sete dias depois. Foi nesse contexto de luto pelo meu colega e pela companheira de partido que o martelo foi relançado – então tinha essa vibe estranha de celebrar a vida dentro da morte (ou seria o contrário?).

Outro (semi)luto foi perceber como as hostilidades entre brasileiros e portugueses tinham se acentuado, e como isso afetava minha relação com a cidade. Talvez só tenha me dado conta em 2018 porque em 2009 a realidade era outra: a lei de migração só foi modificada em 2016, visando facilitar a entrada de imigrantes em Portugal, o que aumentou consideravelmente a taxa de brasileiros no país. Portanto quando estive em Lisboa em 2009, a população de brasileiros ainda era bem menor e, consequentemente, também as tensões eram menores e menos frequentes. Para vocês terem uma ideia, em 2003 os brasileiros representavam apenas 14% da população migrante vivendo em Portugal. Destes, apenas 4% estavam desempregados (contrariando a falácia xenofóbica de que imigrantes "mamam nas tetas do governo", não trabalham e não pagam impostos). Em números absolutos, eram 29 mil brasileiros vivendo lá, em 2003, contra os 400 mil de agora. Com o aumento do número de imigrantes, aumenta o uso da retórica racista/xenófoba da extrema-direita, de fazer dos imigrantes a causa de tudo que não presta em um país -- e aumentam, consequentemente, tensões e ataques. Que raiva.

Mas por que tô escrevendo tudo isso? Porque cheguei em Lisboa em janeiro de 2024 sob uma conjuntura ainda mais tensa que em 2018: a proximidade das eleições de 10 de março, com o partido de extrema-direita Chega! tendo 1/3 da intenção de votos; a convocatória pra uma passeata “contra a islamização da europa”  (foi assim merminho que o partido neonazi alemão, o AfD, nasceu também, com um grupo chamado Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente), manifestações pelo direito à moradia, diversos debates relacionados aos 50 anos do 25 de abril etc.

Foi nesse contexto que fiz uma pequena leitura-preview de ASMA, organizada pela incansável escritora/poeta/performer/pesquisadora feminista, Maria Giulia Pinheiro. O evento era uma pílula do livro que sai em Abril, pela editora Nós, e no fim da leitura abrimos para perguntas. Como ASMA é (também) sobre migração dos refugiados climáticos do nordeste para o sudeste brasileiro, alguém fez alguma pergunta sobre isso e eu respondi que as tensões entre migrantes e não-migrantes acontecem diferente de lugar para lugar, de acordo com o número de pessoas que chegam, sua raça, sua religião etc. Falei que, no caso brasileiro, os nordestinos eram o alvo da xenofobia em São Paulo porque representavam a absoluta maioria de migrantes, onde viravam todos ‘baianos’. Falei que “e aqui em Portugal, sendo a brasileira a maior comunidade migrante, será essa comunidade o alvo mais comum da xenofobia”.

Nesse momento uma pessoa portuguesa pediu a palavra para dizer que brasileiros não são as que mais sofrem com xenofobia, são pessoas negras. Achei, para não dizer outra coisa, curiosa, a necessidade que a pessoa (portuguesa e branca) sentiu de fazer essa "correção" (uma coisa só pode ser corrigida se estiver errada). Primeiramente, eu não disse que brasileiros sofrem mais que outra comunidade. Segundamente, não pude deixar de pensar o quão preconceituoso é, por parte dessa pessoa, assumir que quando falamos "brasileiros", estamos falando exclusivamente de pessoas brancas, e que todos os brasileiros que emigram são brancos. Sei lá. 

Os dados de disponho, e que embasam o que eu disse, nao fazem ranking de sofrimento, mas confirmam ao menos a ocorrência numérica, que era a coisa à qual eu me referia: de acordo as queixas apresentadas à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial de Portugal, os cidadãos do Brasil são as principais vítimas de discriminação de cunho xenofóbico. Ainda segundo o mesmo relatório, as três principais “causas” de discriminação são, respectivamente: contra ciganos (que são, na grande maioria, portugueses), com 21,4% do casos; racismo contra pessoas negras, sejam elas portuguesas, naturalizadas ou migrantes (17,3%); e contra brasileiros (13%). Aliás, muitos desses brasileiros que sofrem xenofobia são também pessoas negras sendo vítima de racismo

E, para adicionar complexidade no debate sobre imigrantes brasileiros em Portugal, recomendo DEMAIS esse artigo de Mariano Hebenbrock, publicado há poucos dias no Marco Zero: "Como brasileiros que vivem em Portugal alimentam o racismo, a xenofobia e o desprezo a imigrantes pobres". 

Mas vá lá, é importante também ser honesta e dizer que não foi tudo tuga-splaining e hostilidade: apesar de todos os problemas de moradia e o brutal déficit da habitação, apesar da austeridade, da pilhagem feita pela União Europeia, da especulação imobiliária, da inflação, do desemprego, Lisboa continua tão bonita e as pessoas, a maioria das pessoas, são mesmo maravilhosas. Quem luta por moradia e direito à cidadecontinua lutando (e lindamente!), os pasteis continuam deliciosos, as livrarias de rua ainda (r)existem; a Feira da Ladra continua com preço justo; as poetas continuam fazendo poesia e o sol, ah, o sol...

 


racistas fascistas chegou a vossa hora
os imigrantes ficam e vocês vão embora
queremos casa
queremos pão
queremos direito à habilitação
queremos casa pra morar
e Palestina livre já


na manif Casas para viver, em 27 de janeiro,
com os flatmates de Anastasia,
e Anastasia (no celular!)


na Greta Livraria, de Lorena Travassos


ó que gracinha dentroooo


um poema de Margarida Farias...


... e capa do livro, indicado por Mariana de Anastasia

com Magiu depois da leitura <3

Outros livros que deu para ler enquanto estive lá foram os de Sofia Perpetua (Tanque, de 2023), Sylvia Damiani (Atlas, de 2022), Maria Giulia Pinheiro (Isso nao é relevante, de 2022), Flora Lahuerta (Língua Solta, 2023) e amei tudo. E no dia da leitura conheci o bisneto (ou era neto?) de Peretz Markish, poeta judeu-ucraniano membro do partido comunista da união soviética, que atuou no Comitê Judeu Antifascista mas que acabou sendo exectado por Stalin, na Noite do Poetas Assassinados. E Duda Alelaf, conheci em Lisboa também, que ainda preciso ler <3

E pra terminar umas fotos aleatórias:



feira da ladra tudo pra mim #1

os colar que eu comprei lá
inspirada na capa do Like a Prayer ;)




percebam que Adília Lopes mora aqui
toda vez vou à Lisboa passo lá
para prestar meu respeito
nunca a vi







 

Tuesday, January 23, 2024

dias 9, 10 e 11, madri

Saí de Girona no sábado, na ressaca de um cookie de maconha que comi por educação kkk Depois de recusar vinho, cerveja e carne, quando meus anfitriões por me fim me ofereceram o cookie como sobremesa, eu fiquei com vergonha de recusar mais uma coisa ofertada com tanta gentileza, e comi um pedacinho. Mal sabia eu o quão doidona eu ficaria, #prego, e quanto demorou pra passar (ainda acordei zoró), mas quando finalmente peguei no sono dormi feito um bebê foi top kkk

O trem foi testemunhando a seca terrível na Catalunha, depois foi vendo as nevascas nas comunidades autônomas de Aragón e Castilla La Mancha – uma mudança tão doida de clima, em tão poucos quilômetros de distância, ajudou a dar ainda mais sustentação visual à mudança climática. Cheguei em Madri sábado de noite, só o pó.

A capital espanhola deve ser meu lugar preferido de visitar, depois do nordeste brasileiro – mas dessa vez fiquei poucos dias e deu tudo meio errado. No domingo, fui ao Matadero, mas a Casa do Leitor, que tava com uma expo sobre Italo Calvino, tava fechada; corri pra dar tempo de ver a exposição de Picasso no Reina Sofia, mas também não cheguei a tempo (fiquei triste, queria ter visto, é uma expo toda dedicada ao que ele produziu no ano de 1906; eu gosto muito desse tipo de recorte, porque a pessoa se aproxima do contexto histórico e mais do processo do artista, não somente do resultado, e é por isso que queria ter visto, nao nutro idolatrias, até porque Picasso era escroto); aí depois dessas duas caminhadonas já era de tardezinha, só me restou voltar pra casa andando. Na segunda passei o dia trabalhando com Lia, minha anfitrôa, e Amanda, outra amiga de longa data de Recife. Improvisamos um co-working na casa de Amanda e lá ficamos, na labuta. Apesar de ser trabalho, foi ótimo <3

Na terça finalmente deu certo bater perna e foi mais ou menos bem-sucedido kkk. Comprei um cinto na cor – atenção pro momento o #odiabovesteprada – cerúleo num brechó; endoidei com umas taças de café que eram de um vidro bem robusto, numa loja da cruz vermelha (ou era do exército da salvação? Não lembro) mas além de ser 8 euros cada uma, seria difícil de transportar; dei um google em “melhor tortinha de limão de Madri” e ele me levou para uma doceria muito cara onde a tortinha era só OK, nada d+; por fim comprei um jornal impresso (já que meu celular é pré-pago e não tenho dados pra ler jornal na internet, só se tiver wifi, mas eu queria ficar na rua) e me sentei no meu canto mais amado em Madri, a Plaza de Puerta de Moros.

Não é nada espetacular. É uma praça de bairro, sem muito praquêisso, gente comum, poucos turistas, graças a Deus. Eu amo esse lugar porque meu filme preferido de Almodóvar (que é meu cineasta preferido), A flor do meu segredo, tem uma cena icônica aqui, quando Leo (interpretada por Marisa Paredes) pede ajuda a um desconhecido para tirar sua bota, presente do marido, que estava apertada demais. Quando estive aqui com mamãe, em março de 2015 (no aniversário dela de 60 anos), tiramos uma foto na fonte (que deu a gota serena e nao achei, pra mostrar aqui) e toda vez que venho pra Madri, vou lá. Inclusive teve uma vez que deixei um par de sapatos meus do lado da fonte, porque existe aquela simpatia que se deixamos nossos sapatos num lugar, voltaremos para lá. Quem sabe. Se bem que, com a Europa mais disposta a abraçar a extrema-direita do que a fazer qualquer concessão na distribuição das riquezas, esse plano vai ter que ficar pra outra encarnação.

Muito do que estava no jornal, aliás, era sobre isso – não sobre reencarnação kkk mas sobre as eleições para o parlamento europeu na Espanha e a assim-chamda "ascensão" do partido de extrema-direita espanhol, o Vox. Curioso que ainda se fale em ascensão, porque para mim a extrema-direita já ascendeu. A fase da ascensão já ficou pra trás. Em quase todos os países do norte global, a extrema-direita está estabelecida, determinando debates, empatando políticas públicas, sangrando os orçamentos via austeridade ou corrupção. Não tem mais isso de ascensão, esses atores estão dentro do jogo.

Li o jornal um pouco impressionada com o posicionamento editorial que, não sendo exatamente pró-Palestina, era certamente e abertamente a favor do cessar fogo. Enquanto isso, um senhor fazia um desenho da plaza. Fiquei com vergonha de fotografar. Mas fiz um desenho dele desenhando.


levando pao e rosas pra minha amada Lia

as tacas que eu queria

bandeiras da palestina na plaza mayor!

a plaza de puerta de moros

a tortinha de limao superestimada

um desenho filosófico de Dora: ela me explicou que 
isso é um buraco negro e dentro do buraco negro moram
todas as cores!

Pilar e o sol

o maravilhoso brinco feito por Amanda
(vao lá ver o trabalho dela!)

amei demais essa placa, fruteria, desenho de frutas, pronto

outra maravilhosa placa

e o véi a desenhar


 Amanhã cedinho sigo para Lisboa. Deus me proteja.


Saturday, January 20, 2024

dias 6, 7 e 8, perto de girona

Vim para Catalunha rever meus amigos, os ex-guerrilheiros Nanda e Boni. Os dois trabalhavam em fábricas em Barcelona, nos anos 70, desde onde organizavam os trabalhadores na luta anarcossindicalista. Quando o cerco apertou, na reta final da ditadura franquista, eles entraram na clandestinidade e passaram a realizar ataques a bancos e carros-fortes, o que lhes rendeu a acusação do crime de terrorismo, e anos na prisão.

Boni foi enviado para uma cadeia comum, onde organizou os assim chamados “presos sociais”, em campanhas abolicionistas e antifascistas. Nanda foi enviada para uma prisão comandada por freiras católicas (“umas nazis”, nas palavras dela) e lá também organizou motins e greves de fome. Ao contrário de Salvador Puig, companheiro dos dois e condenado à morte por suas atividades políticas, o casal felizmente sobreviveu à ditadura mas, se estão vivos, é importante dizer, não foi graças à Lei da Anistia espanhola – foi pela própria luta antifascista.

Promulgada em 1977, a lei perdoa os crimes cometidos pelos militares durante os 36 anos de ditadura do general Francisco Franco. A ferida da execução de Salvador Puig Antich está aberta em muita gente que ainda vive, como Boni e Nanda, seus contemporâneos, seus amigos e descendentes. Conheci os dois em 2019, por acaso, quando passava pelos arredores de Amer, o pueblo perto de Girona onde eles vivem – e essa experiência, que não foi planejada, acabou sendo um giro importantíssimo na pesquisa sobre presos políticos para ASMA (que tem inclusive um poema dedicado a Salvador Puig).

Eu não os via desde 2019, e agora, ao visitá-los, as palavras terrorismo e anistia estavam na boca do povo, na Espanha, de novo, mas não por causa do legado do franquismo, e sim por causa de um político independentista catalão, Carles Puigdemont (natural de Amer e filho do padeiro), foragido da polícia espanhola, desde que encabeçou um referendo pela independência catalã, em 2017. Agora que há a possibilidade de uma anistia, juízes conservadores foram pra cima de Puigdemont para tentardesmantelar o processo, acusando-o de terrorismo.

Não nutro nenhuma simpatia por Puigdemont, mas ele certamente nao é terrorista. Além disso, lawfare é uma coisa deprimente e destrutiva onde quer que aconteça, da Espanha ao Brasil, e fez dessa uma parte meio triste da viagem. Como choveu bastante nos dias que estive com Nanda e Boni, ficamos o tempo todo em casa vendo as notícias. A sensação de estarmos andando em círculos (enquanto humanidade) foi muito opressora, como se o tempo não andasse pra frente.

O tempo que anda pra frente é o tempo de quem trabalha com o povo e com a terra, como Boni e Nanda que, ao serem soltos da prisão, trocaram Barcelona por uma vida no mato, onde cuidam da horta, da casa, e criam galinhas. No nosso último café da manhã, antes de eu pegar o trem pra Madrid, perguntei a Boni o que eles iam fazer naquele dia e ele disse: “o mínimo possível”. Perfeito.




saí de Marselha dia 18 cedinho e tava assim


quando cheguei em Amer, essas duas nuvezinhas
em forma de peixe

a padaria do pai de Puigdemont com cartazes
de liberdade para os presos políticos catalães
(Puigdemont está exilado na Bélgica mas outros foram presos 
por sua participação no referendo de 2017)

no trem de Girona para Madrid, assim

 E umas fotos de quando conheci Amer e Nanda e Boni, em 2019:


o cartaz com a cara de Puigdemont diz
no surrender

"exilados políticos em casa já!"

e Nanda colhendo umas frutinhas <3


 

 

 

Wednesday, January 17, 2024

dia 5, marselha

Robert Habeck (o vice-chanceler alemão, do partido “verde”) falou ontem que a AfD planeja transformar a Alemanha num Estado autoritário como a Rússia. Achei engraçado ele falar isso, porque a mim me parece que a AfD quer transformar a Alemanha de 2024 é na Alemanha mesmo (a de 1933).

É muito oportunismo fazer comparação com a Rússia em vez de olharem para si próprios. Nas notícias, dizem que dezenas de milhares foram as ruas em todo o país, ontem, para sinalizar para o partido neonazi que eles não são benvindos, e isso é bom, mas uma amiga que mora em Colônia me contou que, nas passeatas anti-AfD até agora, as vozes pró-Palestina têm sido vaiadas e iniciativas antirracistas tiveram menos tempo de fala nos discursos. Ora, se estamos falando de organização civil antifascista, não faria sentido dar protagonismo àqueles que mais sofrem/sofrerão com o nazifascismo? Pois é. O negócio é que a Alemanha acha que é possível enfraquecer os neonazi sem antes fazer o trabalho de autocrítica em relação ao passado colonial do país e ao racismo do presente. E ainda acham que é possível afugentar o fascismo com alianças com os (neo)liberais :/

Depois de passar todas essas raivas logo no café da manhã, saí pra bater perna. Foi meu último dia em Marselha, então fui passear de novo, antes de ir para o ateliê de Renata de tardezinha para dar expediente (infelizmente a gata não está de férias e segue no trabalho afff). No caminho encontrei um brechó que quase morro:

parede rosa, lustre rococó, um pato de porcelana: tudo pra mim

e essa garrafa âmbar e turquesa? pêquêpê!


Na Catedral de la Major, conheci a história do santo marselhês Eugene de Mazenod, cujo trabalho missionário tinha muito a ver com aquilo que a gente, na militância gringa, chama de “language justice”. Aprendemos esse termo quando fizemos uma formação com o pessoal do sindicato de inquilinos de Los Angeles, o LATU. Como LA é uma cidade bilíngue, uma parte central do seu trabalho militante é acessibilidade dos conteúdos orais e escritos. Assim como era o trabalho São Eugene, que tentava facilitar o acesso dos pobres, que só falavam provençal (o francês era falado pelas elites) aos serviços de caridade e catequese oferecidos pela igreja. Claro que aqui se trata de sobretudo de converter os pobres pro catolicismo, o trabalho dele não tinha a ver com organizar a galera pela distribuição das riquezas, apenas descomplicar o acesso à caridade. Não estou dizendo que era um padre revolucionário, não haha. Para isso, recomendo conhecer a história do padre Camilo Torres.

Fui também no Vieille Charité, que foi uma “prisão-hospital” que fazia parte do aparato de repressão dos pobres no século 17 e 18. Diz o wiki: “No século 17, a repressão aos mendigos foi conduzida com grande brutalidade na França. Guardas chamados Chasse-gueux ("caçadores de mendigos") tinham a tarefa de prender os mendigos: os não-nativos eram deportados de Marselha e os nativos, enviados para a prisão. Muitas vezes a multidão ficava do lado dos mendigos durante essas prisões [grifos meus para enfatizar que o povo é maravilhoso!]”. Passei um tempo lá endoidando, tentando visualizar quem eram e como foi a vida das pessoas que eram jogadas aí: os pobres, as viúvas, as trabalhadoras sexuais, os leprosos etc.






É que um capítulo inteiro de ASMA é dedicado a questionar o sistema manicomial/carcerário, e tive que pesquisar tanto sobre a história das prisões, durante a escrita do livro, que visitar esse lugar foi como descobrir, só depois de terminada a fase de escrita, que Vashti (a personagem principal de ASMA), esteve presa aqui também. Aproveito o ensejo para mostrar o primeiro verso de um poema do capítulo 2:

galinhas 
 
logo ao chegar, notei que me despersonalizavam (...) uma vez por dia deixávamos a gaiola – um, dois, um dois
Graciliano Ramos


um
cedo abrem esta porta pra que eu saia
o ferrolho muito humilde pede óleo
presta há anos um serviço diligente
muito seco em liga ruim e tinta velha
azul clara como o céu e a depressão
a luz do sol me encadeia: é meio-dia
suei em bicas no escuro 12 horas
eu não de falo de boate sim de cela


Por fim, subi na Basílica de Nossa Senhora da Guarda, que a galera chama de "la Bonne Mère" (a boa mãe), desde onde dá pra ver Marselha todinha. Eu amo um kitsch católico, afinal sou devota de Santa Madonna, a padroeira das leoninas kkk. A basílica é cheia de ex-votos, que eu amo demais, porque sempre dá pra descobrir um pouquinho, tanto de dramas individuais, como de tragédias coletivas, tipo a epidemias de cólera que assolou a cidade no século 19. E tem o drama do mistério também: quem será que foi essa Alexandra aí? Nunca saberei, então só me restar inventar ;)

Amanhã bem cedinho sigo para a Espanha <3




a basílica, vista de baixo


selfie de sombra com gato
(pensando em Lee Friedlander)


a vista das escadarias, na subida


e a vista de lá


tudo pra mim esse painel doirado com passarinhoooo


ex-votos agradecendo pelas graças concedidas
em navegações ou durante a epidemia de cólera


e a misteriosa Alexandra, que recebeu sabe-se lá qual graça
em 1905.

Tuesday, January 16, 2024

dia 4, marselha

Lana Bastašić rescindiu contrato com a editora S. Fischer. Ela tomou a decisão por causa do posicionamento da editora diante do genocídio em Gaza, em particular, e condenando a ‘censura’ de vozes pró-Palestina na Alemanha em geral (para mais: matéria detalhada do Guardian, e um resumo da notícia em português no Monitor do Oriente Médio).

Nem todo mundo tem possibilidade de cancelar um contrato de trabalho, sobretudo a gente, trabalhadores da cultura, esse campo tão precário, e Lana tem consciência disso. O post dela no sobre isso, no seu instagram, fala justamente de como isso afetará sua vida material, e eu achei muito lúcida, a forma como ela expôs seus motivos.

A decisão de Lana me animou enormemente, acho ela que abre um precedente que força os isentões (o lodo da história) a se posicionarem, também. Depois de ficar sabendo que 500 artistas anti-guerra iniciaram uma campanha que convoca ao boicote às instituições culturais alemãs, eu meio que dei graças a Deus de não ser convidada nem escolhida para nada nesse país (mais sobre no meu post do dia 2) e não ter esse dinheiro ozzy nas minhas mãos, porque, considerando que sou uma pobre lascada, seria uma decisão difícil. E olhe que desde que comecei a assinar cartas de repúdio ao boicote de artistas palestinos, e postar sobre isso nas redes, e falar sobre isso publicamente, e ir às passeatas, já fui desconvidada para um evento e uma publicação, na Alemanha – nesse contexto, é até engraçado pensar que agora boicotaremos quem nos boicota #parecequeojogovirounéquerida kkkkk

Com esse sentimentinho temporário de alma lavada fui passear.


en ein

uma bandeira bonita na fachada de um prédio bonitinho 
num bairro bonitinho chamado Panier

foi lá que comi uma madeleine escandalosamente deliciosa,
e vamos combinar que madeleine é apenas um bolo de bacia 
em forma de ppk e essa tava boa demais kkk e me transportou 
imediatamente pros bolos de bacia do camelô que tinha na parada 
de ônibus do trabalho de mamae na avenida caxangá nos anos 80
#elaleuproust

a melhor tortinha de limao que comi
em TODA MINHA VIDA numa
doceria chamada Boulangerie Aixoise

eu fiquei mal demais com isso aqui: Mistral é o nome do vento
que é o motivo pelo qual Gabriela Mistral escoleu esse como sendo
seu pseudônimo - é tanta metáfora nesse adesivo que eu nem sei!

mamae ama Benjamin e falou dessa esquina
La Canebière com a Cours Belsunce
onde ele tomava uns café
aí fui lá bater essa chapa pra ela

santa teresa, belérrima

kitsch católico, tudo pra mim

kitsch católico, tudo pra mim #2


uma desnecesselfie na casa de Renata