A primeira vez que fui à Lisboa foi 2009, foi quando conheci Armin, as leitoras mais antigas talvez se lembrem. Essa viagem foi muito importante, ela marca o re-começo da minha vida, depois de 2008, quando eu sonhava em juntar meus cacos morando o mais longe possível da macharada violenta de Recife, depois de ter (sobre)vivido a violência sexualizada e jurídica. Por isso, uma aura de magia envolveu Lisboa durante muito tempo, como se minha cura tivesse tudo a ver com ela, ou até fosse por causa dela (não foi, mas que ajudou, ajudou!). Mas essa mistificação da cidade era obviamente bem apolítica da minha parte porque, apesar de Portugal ser um dos países com os mais baixos índices violência de gênero da Europa, ainda assim este é o crime mais cometido no país.
Outro aspecto que eu nem prestei atenção, em 2009, foi a xenofobia contra brasileiros, fenômeno do qual só fui me dar conta em 2018. Era março, eu tinha ido para Lisboa para o lançamento da segunda edição portuguesa d'o martelo, que aconteceria em paralelo ao primeiro Festival Feminista de Lisboa (do qual participei com algumas edições do finado zine MPPF) e à Marcha Feminista do 8 de março.
Foi durante essa viagem que aconteceram duas coisas atrozes: a morte de Victor Heringer, dia 7 de março de 2018 e o assassinato de Marielle Franco, sete dias depois. Foi nesse contexto de luto pelo meu colega e pela companheira de partido que o martelo foi relançado – então tinha essa vibe estranha de celebrar a vida dentro da morte (ou seria o contrário?).
Outro (semi)luto foi perceber como as hostilidades entre brasileiros e portugueses tinham se acentuado, e como isso afetava minha relação com a cidade. Talvez só tenha me dado conta em 2018 porque em 2009 a realidade era outra: a lei de migração só foi modificada em 2016, visando facilitar a entrada de imigrantes em Portugal, o que aumentou consideravelmente a taxa de brasileiros no país. Portanto quando estive em Lisboa em 2009, a população de brasileiros ainda era bem menor e, consequentemente, também as tensões eram menores e menos frequentes. Para vocês terem uma ideia, em 2003 os brasileiros representavam apenas 14% da população migrante vivendo em Portugal. Destes, apenas 4% estavam desempregados (contrariando a falácia xenofóbica de que imigrantes "mamam nas tetas do governo", não trabalham e não pagam impostos). Em números absolutos, eram 29 mil brasileiros vivendo lá, em 2003, contra os 400 mil de agora. Com o aumento do número de imigrantes, aumenta o uso da retórica racista/xenófoba da extrema-direita, de fazer dos imigrantes a causa de tudo que não presta em um país -- e aumentam, consequentemente, tensões e ataques. Que raiva.
Mas por que tô escrevendo tudo isso? Porque cheguei em Lisboa em janeiro de 2024 sob uma conjuntura ainda mais tensa que em 2018: a proximidade das eleições de 10 de março, com o partido de extrema-direita Chega! tendo 1/3 da intenção de votos; a convocatória pra uma passeata “contra a islamização da europa” (foi assim merminho que o partido neonazi alemão, o AfD, nasceu também, com um grupo chamado Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente), manifestações pelo direito à moradia, diversos debates relacionados aos 50 anos do 25 de abril etc.
Foi nesse contexto que fiz uma pequena leitura-preview de ASMA, organizada pela incansável escritora/poeta/performer/pesquisadora feminista, Maria Giulia Pinheiro. O evento era uma pílula do livro que sai em Abril, pela editora Nós, e no fim da leitura abrimos para perguntas. Como ASMA é (também) sobre migração dos refugiados climáticos do nordeste para o sudeste brasileiro, alguém fez alguma pergunta sobre isso e eu respondi que as tensões entre migrantes e não-migrantes acontecem diferente de lugar para lugar, de acordo com o número de pessoas que chegam, sua raça, sua religião etc. Falei que, no caso brasileiro, os nordestinos eram o alvo da xenofobia em São Paulo porque representavam a absoluta maioria de migrantes, onde viravam todos ‘baianos’. Falei que “e aqui em Portugal, sendo a brasileira a maior comunidade migrante, será essa comunidade o alvo mais comum da xenofobia”.
Nesse momento uma pessoa portuguesa pediu a palavra para dizer que brasileiros não são as que mais sofrem com xenofobia, são pessoas negras. Achei, para não dizer outra coisa, curiosa, a necessidade que a pessoa (portuguesa e branca) sentiu de fazer essa "correção" (uma coisa só pode ser corrigida se estiver errada). Primeiramente, eu não disse que brasileiros sofrem mais que outra comunidade. Segundamente, não pude deixar de pensar o quão preconceituoso é, por parte dessa pessoa, assumir que quando falamos "brasileiros", estamos falando exclusivamente de pessoas brancas, e que todos os brasileiros que emigram são brancos. Sei lá.
Os dados de disponho, e que embasam o que eu disse, nao fazem ranking de sofrimento, mas confirmam ao menos a ocorrência numérica, que era a coisa à qual eu me referia: de acordo as queixas apresentadas à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial de Portugal, os cidadãos do Brasil são as principais vítimas de discriminação de cunho xenofóbico. Ainda segundo o mesmo relatório, as três principais “causas” de discriminação são, respectivamente: contra ciganos (que são, na grande maioria, portugueses), com 21,4% do casos; racismo contra pessoas negras, sejam elas portuguesas, naturalizadas ou migrantes (17,3%); e contra brasileiros (13%). Aliás, muitos desses brasileiros que sofrem xenofobia são também pessoas negras sendo vítima de racismo.
E, para adicionar complexidade no debate sobre imigrantes brasileiros em Portugal, recomendo DEMAIS esse artigo de Mariano Hebenbrock, publicado há poucos dias no Marco Zero: "Como brasileiros que vivem em Portugal alimentam o racismo, a xenofobia e o desprezo a imigrantes pobres".
Mas vá lá, é importante também ser honesta e dizer que não foi tudo tuga-splaining e hostilidade: apesar de todos os problemas de moradia e o brutal déficit da habitação, apesar da austeridade, da pilhagem feita pela União Europeia, da especulação imobiliária, da inflação, do desemprego, Lisboa continua tão bonita e as pessoas, a maioria das pessoas, são mesmo maravilhosas. Quem luta por moradia e direito à cidadecontinua lutando (e lindamente!), os pasteis continuam deliciosos, as livrarias de rua ainda (r)existem; a Feira da Ladra continua com preço justo; as poetas continuam fazendo poesia e o sol, ah, o sol...
racistas fascistas chegou a vossa hora
os imigrantes ficam e vocês vão embora
queremos casa
queremos pão
queremos direito à habilitação
queremos casa pra morar
e Palestina livre já
Outros livros que deu para ler enquanto estive lá foram os de Sofia Perpetua (Tanque, de 2023), Sylvia Damiani (Atlas, de 2022), Maria Giulia Pinheiro (Isso nao é relevante, de 2022), Flora Lahuerta (Língua Solta, 2023) e amei tudo. E no dia da leitura conheci o bisneto (ou era neto?) de Peretz Markish, poeta judeu-ucraniano membro do partido comunista da união soviética, que atuou no Comitê Judeu Antifascista mas que acabou sendo exectado por Stalin, na Noite do Poetas Assassinados. E Duda Alelaf, conheci em Lisboa também, que ainda preciso ler <3
E pra terminar umas fotos aleatórias: