Parto para Marselha um dia depois que a Alemanha abriu a boquita em Haia pra dizer os países que denunciam o genocídio causado por Israel são uó e que eles – os alemães! – se oferecem como mediadores.
De tarde, fui pra natação kkkry (ref: MC Kafka: "2 de agosto de 1914: A Alemanha declarou guerra contra a Rússia. À tarde, fui pra natação"). Cheguei bem no aeroporto, apesar de greve dos condutores de trem, e no aeroporto mesmo nem foi tão horrível quanto geralmente é.
Na sala de embarque, conheci Brigitte. Começamos a conversar quando eu achei que tinha metido meu cachecol na cara dela sem querer e pedi desculpa. Ela, engraçada: “não se preocupe, você não casou lesão corporal grave” e riu. Eu logo vi que não era alemôa, não somente pelo sotaque, mas pelo humor. Aprofundamos a conversa: francesa do norte do país, tinha ido a Berlim visitar filho e netos, e agora voltava pra cidade no sul da França, para onde ela se mudou há apenas seis meses, depois de se separar de um marido abusivo com quem foi casada 47 anos. Perguntei porque, e ela disse sem arrodear: “porque demorei 47 anos pra perceber que ele não ia mudar”. Admirei a honestidade, quando ela concluiu “e sabe o que é a coisa mais estranha, minha filha? Ainda tem um lado meu que sonha que ele vai mudar, porque eu sinto muita saudade”. Foi bonito ver alguém que não queria ser agradável, nem engajar num small talk tabacudo de aeroporto. Eu perguntei com interesse verdadeiro, ela respondeu verdadeiramente. Sobretudo me comoveu o fato de que: se pra gente (que cresceu e se socializou num mundo de redes sociais e com ideia feministas um pouco mais naturalizada) não é fácil assumir as contradições da heteronormatividade, imagina para alguém de quase 70 anos, que cresceu e se socializou em outro contexto, com outras linguagens e expectativas para mulheres?
O voo foi tranquilo, eu tenho pânico de viajar de avião mas não sei porque estava tao tranquila e não tive susto hora nenhuma. Foi bonito ver os Alpes e Marselha de cima; além disso, tinha me esquecido de que independente de quão nublada seja a cidade, em cima das nuvens o sol sempre brilha. Foi bom lembrar.
Quando chegamos, Brigitte me ajudou a encontrar o ônibus pro centro, que eu peguei, e fui encontrar minha anfitriôa, Renata, no ateliê dela. E de noite fomos num ballroom, e Deus como me senti peixe fora d’água, com meu moletonzinho marrom e minha legging preta e meu oclinhos e minha vontade de sentar (numa cadeira!) kkk Mas foi tão bom ver as jovens ocupando a rua pra frangar!
Antes de dormir somei as notícias de Haia com as que chegaram poucos dias antes, de que o partido nazista AfD se encontrou, em novembro de 2023, com lideranças do partido democrata-cristão (CDU) e outras organizações da extrema-direita, para delinear, entre outras coisas, um plano de deportações em massa – inclusive de pessoas com passaporte alemão mas ascendência não-alemã. Eu nunca entendi porque alguns intelectuais que admiro, quando perseguidos pelo nazifascismo (que não eram apenas judeus, como Brecht, por exemplo) sobreviveram por deixar o país a tempo, enquanto outros não. Quais sinais foram mal interpretados? Onde a análise de conjuntura falhou? Qual capital social havia ou não havia – contatos, amizades, vantagens – que ajudaria a determinar que uns morressem e outros não? Eu tenho pensando mais nisso agora do que o normal.
1 comment:
Que boa ideia contar a viagem!
E esse encontro com Brigitte foi muito auspicioso. O dia 1 foi um ótimo começo.
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