Friday, October 28, 2016

um tipo de perda, de ingeborg bachmann



Juntos usamos: as estações do ano, livros e uma música.
As chaves, os saquinhos de chá, a cesta de pão, lençóis
     e uma cama.
Uma herança de vocabulário, de gestos, trazidos,
     utilizados e gastos.
Obedecidas as regras do prédio. Dito. Feito. E a mão
     sempre estendida.

Sempre me apaixonei pelo inverno, por um quinteto vienense
     e pelo verão.
Por mapas, por uma casinha na montanha, por uma praia,
     por uma cama.
Ritualizo datas, declaro incanceláveis as
     promessas,
idolatro qualquer coisa e sou devota do nada,

( -- do jornal dobrado, do cinzeiro cheio, do papelzinho
      com um recado)
não tenho medo de religião, porque igreja era essa cama.

Da vista do mar nasceu essa pintura incansável.
Da varanda dava pra saudar os povos,
       meus vizinhos.
Perto da lareira, em segurança, meu cabelo tinha
       sua cor mais extrema.
O toque da campainha era o alarme da minha felicidade.

Não foi você que eu perdi,
foi o mundo.



um esboço de fabio maca e o original em alemôo




não conhecia esse poema, que faz parte da reta final da produção em poesia de ingeborg (acho inclusive que esse sequer foi publicado em livro, ela alias só publicou dois de poesia, depois mudou pra prosa e nunca mais voltou). encontrei em "tempo aprazado", as traduções de ingeborg pro português, feitas por judite berkemeier e joão barrento e publicadas pela assírio alvim em 1992. ainda que ache a tradução de berkemeier e barrento muito bonita, não deixa de ser distante da língua falada do lado de cá do atlântico então publico aqui a minha tradução pro português brasileiro.

esse texto me deixou particularmente assanhada porque, ainda que haja aquela coisa véia de exaltação da natureza que ela adora, há aqui também uma perda de controle, é ingeborg histérica, com saudade de transar com o boy. porque claro que não foi o mundo que ela perdeu, ainda que ela diga que foi. foi o boy. e o que é um boy senão o fucking mundo da gente?

tomei a liberdade de mudar algumas coisas do original por achar solene DEMAIS quando em português. 1) "Leintücher" significa lençóis de linho pelamor quem usa essa porra? ficou lençóis na tradução; 2) "Worte" é palavras, escolhi vocabulário por achar que todo casal tem seu léxico particular, não apenas palavras mas um vocabulário próprio que inclui sons, grunhidos, piadinhas internas em comum e toda sorte de bobagens; 3) "der kalten Asche" é cinzas frias e traduzi pra cinzeiro cheio, obviamente não é a mesma coisa no sentido de materialidade, mas é o que a coisa que dizer que minteressa: cinzas frias são os rastros dos cigarros fumados há muito ou as cinzas da lareira há muito apagada - ou seja, o boy que foi simbora - e um cinzeiro cheio também é isso, um tipo de "pegada" emocional, algo ali abandonado.